domingo, janeiro 20, 2008

FRENTE RIBEIRINHA, A ÁREA DELICADA DE LISBOA

Publicado no site oasrs.org por António Henriques

A regeneração da área das docas e a Expo’98 não eliminaram a barreira entre porto e cidade de Lisboa, diz o arquitecto Pedro Ressano Garcia. As transformações na frente ribeirinha permitem a ligação ao rio ou servem para tornar urbanos os terrenos portuários?

Pedro Ressano Garcia, autor de uma tese sobre a reconversão das frentes ribeirinhas nas cidades (de 2005, à espera de ser defendida na Universidade de Lisboa), afirma que a «barreira existente entre o porto e a cidade ainda é o grande problema do núcleo central de Lisboa».

Não é por acaso que o programa prévio da Trienal Internacional de Arquitectura de Lisboa se iniciou, entre 20 e 22 de Outubro de 2006, com um seminário sobre o estuário do Tejo e as frentes de água e uma visita para centenas de alunos universitários, conduzida pela Administração do Porto de Lisboa, a locais nas duas margens do Tejo que vão ser objecto de propostas de «requalificação» dos estudantes.

Área portuária no coração da cidade
É porque a frente ribeirinha, para qualquer habitante, é a «zona mais delicada de Lisboa», como sustenta Pedro Ressano Garcia – basta lembrar a controvérsia do Plano de Ordenamento da Zona do Porto de Lisboa (POZOR), de 1993/94, e o chumbo que mereceu há alguns anos – e porque muito se joga nestes terrenos virados ao rio.

A área portuária que está no coração da cidade «constitui hoje um espaço central em que programas e ideias podem vir a tornar-se em ícones contemporâneos», sustenta o arquitecto.

«Só uma vez na vida se tem a possibilidade de repor a condição antiga da cidade, suprimir as suas necessidades e instalações, trazer novo valor ao espaço público e arranjar soluções constantemente adiadas».

Mas a reconversão da frente ribeirinha é uma oportunidade para restabelecer a ligação ao rio ou para o desenvolvimento da cidade nos antigos terrenos portuários? «É uma diferença que parece pequena mas que é essencial».

Privatizar o espaço público
Segundo Pedro Ressano Garcia, «a venda de antigas áreas portuárias ao sector privado tende a privatizar os espaços públicos nas imediações dos novos empreendimentos» Mais: «Tende a adoptar soluções que redundam em condomínios privados».

Antigas zonas portuárias de cidades como Bilbau, Barcelona, Rio de Janeiro, São Francisco e Lisboa são «discutidas ao metro quadrado pelos promotores» e têm como consequência «protestos do público porque percebem que os [empreendimentos] não irão melhorar a qualidade de vida».

Ao contrário do que se poderia esperar, Pedro Ressano Garcia diz que o projecto urbano para os terrenos da Expo’98 e uma maior fruição do rio por parte dos lisboetas, incontestável com os novos usos dados aos armazéns e zonas portuárias desafectados, não contribuíram para acabar com a grande barreira que separa a cidade do rio. «Em Santos e Alcântara discute-se a alteração da linha dos comboios e das vias de circulação de trânsito intenso».

Jardins e equipamentos culturais ligados
Em vez disso, o arquitecto propõe que se reate a relação interrompida com o rio de outra forma: através da alteração da morfologia do terreno, «misturando arquitectura e planeamento do espaço público».

Pedro Ressano Garcia propõe a extensão dos jardins 9 de Abril (até à doca de Alcântara) e de Santos até ao rio para criar um espaço de uso público que crie outros fluxos para lá da intensa circulação automóvel.

O prolongamento do jardim de Santos seria ocupado por edificações localizadas ao longo de pequenos quarteirões e ruas estreitas e de sete vias principais perpendiculares ao rio; percursos para peões ligariam a cidade ao Tejo, «através de rampas entre vários níveis», numa recriação da geometria de Lisboa de antes do terramoto.

Na verdade, numa recriação, também, da fábrica medieval que ali desapareceu em 1755. Diferenças de cota no piso térreo das edificações iriam conferir «uma percepção diferente do terrapleno [de Santos]», retirando-lhe o carácter de superfície plana da ocupação portuária.

Por outro lado, Pedro Ressano Garcia imaginou um terraço, na Rocha Conde de Óbidos, que faz a ligação da parte alta até ao rio, através de dois níveis diferentes, das instituições e equipamentos da zona (sede da Cruz Vermelha, Museu de Arte Antiga (MNAA), o referido jardim 9 de Abril, o porto de Lisboa, a Gare Marítima Rocha Conde de Óbidos e o Museu do Oriente).

Sob esse terraço encontrar-se-ia um edifício, interiormente ocupado por áreas de exposição, comércio e serviços, que permite a ampliação dos museus existentes e de outros equipamentos que possam instalar-se; o estacionamento previsto tem acesso quer pela zona do rio quer pelo interior da cidade. «Autocarros de turismo podem parar sob o edifício, ao nível do porto». Toda esta área poderia vir a ser definida «como centro artístico e cultural. Desenhámos uma nova porta para a cidade e para equipamentos como o MNAA, que cria uma nova centralidade em Lisboa».

Renovação urbana com frente popular alargada
Uma das inevitabilidades da requalificação urbana das frentes portuárias é a sua complexidade. Na tese de doutoramento, com prova final para breve, Pedro Ressano Garcia evoca o caso de Minneapolis, em que «o presidente do município fundou uma organização sem fins lucrativos para liderar o processo da renovação urbana».

Denominada Saint Paul Riverfront, «tem uma administração formada por um grande número de membros oriundos de todos os sectores da sociedade, incluindo entidades oficiais da cidade, do distrito e do estado, associações comunitárias e de moradores, fundações, empresas comerciais e industriais, a Administraçao do Porto de Saint Paul e a Câmara de Comércio da Área de Saint Paul».

Não deixa de ser paradigmática a menção que Pedro Ressano Garcia faz do modo como o presidente da câmara encarou os convites feitos a um número alargado de pessoas e entidades: «Esforçou-se por criar um forte relacionamento organizacional entre os grupos com diferentes interesses, porque acreditava que as relações são melhores que as regulamentações».

Sem comentários: