sábado, maio 10, 2008

UNIÃO SOVIÉTICA DAS ALMAS NA PÁSCOA ORTODOXA

Publicado no Diário de Notícias por Carla Aguiar

Mais de 500 ortodoxos de vários países celebraram até de madrugada

Em Alfama, na igreja russa mais ocidental da Eurásia, a celebração da Páscoa ortodoxa recriou, na noite de sábado para domingo, uma espécie de união soviética das almas. Umas cinco centenas de russos, mas também moldavos, ucranianos, sérvios e imigrantes de outros países do ex-bloco de Leste, juntaram-se em harmonia na Rua do Jardim do Tabaco, em Lisboa, para comemorar a ressureição de Cristo, partilhando provavelmente a celebração pascoal mais quente do continente europeu. Até perto das 5 horas da madrugada.

O termómetro marcava 23 graus pouco antes das 23 horas quando, no interior da singela igreja do Patriarcado de Moscovo, a azáfama dos últimos preparativos convivia com a placidez das senhoras sentadas com lenços coloridos enrolados à cabeça, um traje obrigatório para as mulheres. Os fiéis, em constante corropio, transportando cestas de comida, tinham de tomar cuidado para não tropeçar num berbequim e num martelo, enquanto ainda havia quem, empoleirado num escadote, vestisse de papel de prata duas vigas de ferro à entrada da igreja.Lá fora, junto à porta, o sacerdote Arsérnio absolvia, com grande informalidade, os pecados de alguns fiéis. Este ano o sacerdote teve menos trabalho. No ano passado foram quase cinco mil as pessoas que ali acorreram para a celebração.

A comunidade de imigrantes cristãos ortodoxos em Portugal está a encolher, apertada pelo desemprego e pela deprimida economia que teima em não crescer tanto quanto devia.Nada que perturbe demasiado Dumitru, um moldavo de 44 anos, que trabalha na empresa de enchidos Sicasal, e está em Portugal há seis anos. "Muitos moldavos estão a sair para outros países, como Inglaterra e Irlanda, mas aqui está-se bem, tudo normal", diz num sorriso optimista. A confiança é pelo menos suficiente para ter mandado vir a mulher, Parascovia, que cá está há seis meses. De lenço à cabeça, Parascovia segura algumas velas na mão - que acenderá mais tarde quando sair a procissão para dar a volta ao quarteirão - , e faz questão de falar, num português muito incipiente, das tradições que unem todos os que ali estão. Como a do jejum de seis semanas, de carne e leite, que antecede a Páscoa e a dos ovos cozidos pintados, que são levados para serem benzidos e que deverão dar sorte durante um ano. Parascovia ainda não se conforma, contudo, com a decisão tomada em 1582 pela Igreja Romana de adoptar o calendário Gregoriano, elaborado pelo Papa Gregório XIII, que ditou a celebração da Páscoa numa data diferente. "Era mais bonito ser tudo no mesmo dia", disse.

Enquanto a missa decorria, com a maior parte da assistência sem lugar dentro da igreja, as irmãs moldavas Natalia, 22 anos, e Cristina Navin, de 15, aguardavam cá fora. A família Navin representa mais um exemplo de que, se é verdade que muitos imigrantes estão a sair, muitos continuam ainda a chegar a Portugal. Num Português irrepreensível, aprendido há apenas quatro anos, dizem que agora Portugal é a sua pátria, pois vários membros da família, num total de 29, já estão todos cá. Para desespero da PSP - com a missão de interromper o trânsito - a procissão só saiu pelas ruas Alfama já perto da meia-noite, feita de velas acesas e de um longo e sereno cântico, que nem o latir de um cachorro pouco ortoxo foi capaz de perturbar. A celebração continuou com a benção das cestas de comida e um concerto pascal das crianças da Comunidade de Todos os Santos. Estava mais do que aberto o apetite para o banquete, às 04.00 da manhã.

Sem comentários: